UEMA Literatura: Leia a Crônica “Medicamento” escrita pelo professor Jean Nunes
Por Assessoria de Comunicação Institucional em 1 de agosto de 2021
A primeira edição do Projeto UEMA literatura apresenta a Crônica “Medicamento”, escrita pelo professor do Curso de Direito da UEMA, Jean Nunes. Para ler outros textos do mesmo autor, acesse o blog Pesquise Direito pelo link https://pesquisedireito.blog/.
MEDICAMENTO
A relação que o brasileiro tem com os medicamentos é mesmo especial.
O fato de ser pouco lembrada e menos ainda discutida não lhe retira a peculiaridade e nem evita que ela assuma várias e interessantes dimensões.
Por aqui, compramos remédios na farmácia, claro. Mas, em geral, não vemos graça nisso. É um produto que não sabemos como foi produzido e nem, ao certo, o que ele faz. Tomamos mais por desencargo de consciência que por convicção.
Não digo com isso que a rejeição à farmácia seja total. Há inclusive alguns medicamentos que nos acompanham por anos e marcam importantes etapas de nossas vidas, vinculando-se ao afeto com que guardamos nossas lembranças.
O Merthiolate não me deixa mentir. É mais fácil encontrar, em nossa memória, o ardor e as lágrimas que a sua pazinha provocava que a dor dos ferimentos que ela pretendia desinfectar. E quem, tendo filhos na última década, não conviveu com o Paracetamol, o superpoderoso Predsim, ou mesmo a dinâmica dupla Berotec e Atrovent?
E o que dizer daquele outro casal que, nas décadas de 1980 para trás, era pau para toda obra? O Biotônico Fontoura e a Emulsão de Scott, no meio em que vivia, eram administrados contra anemia, frieira e até bicho de pé. Ao preço de um gosto amargo, até saudade eles ajudavam a superar.
Esse também é outro aspecto que chama a atenção na forma como lidamos com os medicamentos. Conseguimos extrair uma versatilidade que farmacêutico nenhum no mundo supõe ser possível. E isso quando não transformamos alimentos em remédio. A gemada, por exemplo, já espantou resfriado e acalmou intestinos em combustão. Dona Francisca, uma simpática vizinha que morava no bairro onde cresci, vivia receitando óleo de Prímula para controle hormonal na menopausa, problemas de pele, piolho e até lombriga. Nada escapava ao poder curador de sua receita.
Além do medicamento em si, a relação possui singularidades no que diz respeito ao seu uso. A mãe do compadre que o diga. Junto com a idade vieram as pílulas. Mas ela nunca deu o braço a torcer. Como boa economista, coloca-as sobre a mesa, no horário aprazado, e analisa, cuidadosamente, pelo tamanho e pela espessura do comprimido – e, às vezes, pelo cheiro – se ele merece ser tomado inteiro ou à razão de uma fração que ela acha que seja compatível como o tamanho de seu corpo, tipo sanguíneo, signo e a posição astral da lua.
– Mas, Dona Silvana, a senhora não avalia que o médico já prescreveu o medicamento na dose certa? – Disse o compadre, intrigado, num diálogo que tive a felicidade de saborear.
Ela pegou a pílula, aproximou do nariz, refletiu por alguns segundos e esclareceu o homem de pouca fé:
– Não é ele que vai tomar. Eu que sei o que é melhor para mim. Com esse cheiro e desse tamanho não tomo.
Sorrimos, impressionados com a capacidade da mulher de tornar o medicamento um placebo.
Mas não é só em relação à quantidade. Não tem quem faça, por exemplo, minha tia Joaquina tomar um comprimido vermelho.
– Lembra sangue e atrai a morte. – Diz ela, com firmeza, antes de completar com a lembrança de sua infância:
– Bom mesmo era no meu tempo. Sem farmácia, a gente mesmo fazia os nossos remédios.
Ah, sim! Manipular os princípios farmacêuticos é muito mais interessante. E aqui a exuberância do conhecimento que o nosso povo tem neste campo impressiona. Não apenas produzimos. Temos, na ponta da língua, uma didática para ninguém botar defeito, capaz de explicar todo o método de preparação do unguento a qualquer pessoa, não importando qual seja o seu nível de instrução formal. “Antes que o dia amanheça, colha o Capim Santo, em quantidade não superior a um punhado, coloque-o para ferver por alguns minutos em água tirada do pote, com algumas folhas de Boldo, e depois adoce com mel de cana conforme o gosto. Recolha o maço que sobrar na panela e coloque para secar ao sol, por um ou dois dias, e depois o envolva com óleo de copaíba numa folha de bananeira”.
Não para aí.
Prescrevemos como ninguém. Anos e anos de faculdade e os médicos não alcançam esse nível. Os ininteligíveis – e ilegíveis – rabiscos com que preenchem seus receituários são a prova viva dessa frustração que eles carregam. Um pouco menos de ciência e mais de observação e vivência junto do povo os ajudaria a desenvolver melhor essa habilidade.
Não podemos ver uma pessoa se queixar de uma dor, de um desconforto, de uma falta de respeito, que a anamnese é feita e uma prognose de cura anunciada. Não é exercício ilegal da profissão não. É solidariedade mesmo.
Sou a prova viva disso. Logo que conheci minha esposa, vieram seguidas crises de fortes dores localizadas no que vovó chamava de “boca do estômago”. Alucinantes e acompanhadas de sudorese excessiva, elas não escolhiam lugar e nem hora para se instalarem. O meu então futuro sogro, fiscal da receita estadual aposentado, mal me viu e identificou o problema – ou melhor, nele se identificou:
– Já tive isso, rapaz.
– Como eram suas dores, Seu Vilson?
Ele nem precisou se aproximar. Lá de longe, espichou o olhar por cima dos óculos e diagnosticou:
– Iguais às suas.
– Hum…
Como o senhor resolveu?
– Curei com leite de jumenta.
Talvez, em outra parte do mundo, uma receita como essa ficasse esquecida. Mas por aqui levamos isso a sério. “Dar com os ombros” seria uma desfeita sem tamanho. O homem se solidarizou com a minha dor, teve o trabalho de fazer o cuidadoso diagnóstico e ainda prescreveu a acurada terapêutica. Isso sem falar que era o pai da escolhida, o que não me abria muitas possibilidades. Fiz-me, então, crente de sua ciência.
– Mas, Seu Vilson, não tem leite de jumenta por aqui, né!?
Ele fez uma cara de um médico que dá alta a um paciente há muito hospitalizado, e anunciou, feliz:
– Hoje é seu dia de sorte. O leite me ajudou tanto que comprei uma jumenta.
Pus a cara de alegria que as circunstâncias permitiam e aquiesci.
Felizmente, as jumentas não produzem muito leite. Mas todos os vinte litros que ela produziu naquele mês tomei. Ainda tentei ensaiar uma melhora, mas o meu terapeuta justificava o tratamento pela prevenção: Melhor não arriscar. Vai que essa dor resolva voltar. – Dizia ele, certo de que também cuidava do futuro da filha.
Assim, não tive escapatória. Quente. Frio. Sem sal e nem açúcar. Gole a gole, segui o tratamento, sob o olhar do perito que fazia questão de se certificar de que nada havia sobrado no fundo do copo.
Nos meses seguintes, quando finalmente foram retiradas as duas pedrinhas que engarrafavam o meu estreito colédoco, o Dr. Marques, após me explicar como utilizaria a extensa relação de medicamentos, afirmou:
– Meu jovem, o que também pode te ajudar na recuperação é uma dose de mastruz com leite, por sete dias, às 18h.
Agradeci e já me dirigia à saída do consultório quando meu sogro – que achou que aquele era um bom momento para se fazer presente -, aguçou a curiosidade:
– O mastruz deve ser misturado com qual leite, doutor?
A resposta veio incontinente:
– Pode ser de vaca mesmo. Mas se tiver de janaúba melhor.
O Seu Vilson já ia prosseguir com o questionamento quando o médico disse o que ele queria ouvir:
– Mas o melhor mesmo é o de jumenta. Vai melhorar até a pele dele.
Por Jean Nunes