UEMA Literatura deste domingo apresenta o conto “Benedita”, de autoria de Érika Ribamar Madeira Furtado, acadêmica de Pedagogia
Por Assessoria de Comunicação Institucional em 1 de maio de 2022
O UEMA Literatura deste domingo apresenta o conto “Benedita”, de autoria de Érika Ribamar Madeira Furtado, acadêmica do curso de Pedagogia.
Benedita
Era mês de março, o lago do Pinto estava completamente cheio. Benedita remava a canoa e admirava o contraste da plantação de arroz e o alaranjado do pôr-do-sol que refletia nas águas escuras do lago. Ao atracar a canoa, ela avistou o esposo consertando a cerca de arame farpado que protegia os belos pés de mandioca. Benedita foi até ele e ofereceu ajuda.
– Quer uma mãozinha, home?
– Num precisa, não. Tô cabando, já. Se tu visse o estrago que os bode de Zé Bacari fizero… – ele apontou para o cercado – mulher, deu uma trabalheira danada – Francisco sentou-se em um tronco de angelim que estava próximo, tirou o chapéu da cabeça e questionou a esposa – Agora me diga uma coisa, o que diacho tu fazia inté essas hora embrenhada no mato?
– Eu fui espiar as palmeira. E num é que dei sorte, home! Aquelas pra bandas do cercado de Zé Bacari tavo lastrada. E só as boa de largar, das emenda graúda. Aquelas bem de perto da mata. – explicou Benedita– Aproveitei e fiz logo umas ruma pra amanhã eu ir pegar cedinho.
– Mulher, tu já tá no cercado desse home?! Tu sabe como ele é…
– Mas Chico, é direito da gente. Tu viu na reunião lá na associação!? Temo direito de juntar nosso coco sussegada.
Francisco entendia que ela estava certa, mas também sabia que na prática as coisas eram totalmente diferentes. Preocupado, ele alertou a companheira – Mulher, esse povo dessas banda num se importa com esses negócio de direito, não. Tu sabe disso mais melhor que eu.
– Eu sei. Mas eu merma que num vou viver a vida com medo dessa gente. Sou filha de Ramundo Pinto e Rosalva. Num nasci pra viver feito muçum, escondido na lama. – Benedita olhou para o céu – Sei que meus velho tão com São Benedito olhando por nós. E tenho certeza que eles tão mais melhor que a gente. Lá deve ter terra pra todo mundo prantar, colher, e viver sussegado. Mas aqui nós precisa continuar, seguir a luta.
Benedita sempre morou as margens do lago do Pinto. Ela, os dois irmãos mais velhos, a mãe Rosália e o pai, Raimundo Silva, mas conhecido como Raimundo Pinto; apelido que ganhara por conta da sua paixão pelo lago, cultivavam arroz, mandioca, macaxeira, e milho. Enquanto Raimundo e os filhos cuidavam da lavoura; Rosália quebrava coco babaçu com a filha. Na época havia um grande palmeiral na região. Anos depois, a maior parte da terra fora ocupada por criadores de gado e búfalos. O que gerou muitos conflitos. Em um desses conflitos, Benedita, aos dezessete anos, perdera os pais e os dois irmãos. Foi nesse período que ela conheceu e casou-se com Francisco. Após o casamento, os dois precisaram fugir para a casa de conhecidos da família em uma outra cidade, por conta das ameaças que receberam. Mas eles não se adaptaram a vida na zona urbana, e meses depois, voltaram. Desde então, há maios ou menos sete anos, eles passaram a conviver com as ameaças dos fazendeiros da região, inclusive, do temido Zé Bacari.
Todas essas ameaças assustavam Francisco. E naquela tarde, ele conversou com Benedita, no intuito de convencê-la a desistir dos cocos que havia deixado nas terras do fazendeiro. Mas ele não conseguiu. Benedita aprendera com os pais que nunca deixaria de lutar por tudo o que acreditava, pois o medo jamais lhe curvaria. Anoiteceu, Benedita preparou uma panelada de traíra no leite de coco babaçu para o jantar. No quintal, próximo a casa, os dois filhos, um de seis e o outro de quatro anos, brincavam contando vaga-lumes; enquanto Francisco consertava o socó feito de tala de marajá. A comida ficou pronta, todos puderam jantar e ir dormir.
Ainda era madrugada, quando Benedita levantou-se. Foi até o cômodo no qual os dois filhos dormiam. Apagou a fumaça que havia feito para espantar as muriçocas. Balançou a rede do caçula. Ajeitou o lençol do primogênito. Deu um beijo na testa de cada um deles. Foi até a cozinha, preparou o “chocolate de fubá“ uma espécie de bebida feita de mesocarpo; fez uma farofa de toucinho. Em seguida, vestiu uma calça e uma jaqueta jeans para proteger-se do capim e dos insetos. Pegou três cofos, o facão, e o depósito com a farofa. Naquela madrugada, assim como de costume, ela saiu sem acordar Francisco.
Benedita remou por aproximadamente quinze minutos. Ao longo do percurso, admirou tudo ao seu redor, o canto das japiaçocas e das marrecas; o colorido das flores que emolduravam o lago; o cheiro de mato que espalhava-se junto da bruma. Pensou em seus pais. Lembrou-se o quanto eles amaram e cuidaram daquele lugar. Foi justamente com eles, que ela aprendera todos os segredos da vida no campo: a época certa para cada tipo de lavoura; como as fases da lua interferem nas plantações; até mesmo sobre como conversar e pedir proteção ao lago. Entre outros ensinamentos que ela gostaria de repassar aos seus filhos.
Chegando ao destino, Benedita atracou a canoa em um tronco de arapari que ficava por trás de uma moita de giquiri. De longe era possível ver as poucas palmeiras que restaram do palmeiral em que sua mãe costumava juntar coco. Bem ao lado, uma faixa de árvores nativas, onde ainda era possível encontrar alguns pés de aninga, jeniparana e criviri. Já não existia mais os pés de embaúba, bacaba, anajá, e arariba, que antes existira por lá. Mesmo assim, o lugar era conhecido como “mata bonita”. As poucas árvores que resistiram, guardavam apenas as lembranças. Foi tudo o que restou após Zé Bacari ocupar aquelas terras com plantações de capim e proibir a entrada de quebradeiras de coco. Inúmeras vezes, Benedita e outras mulheres foram expulsas por capangas, enquanto juntavam coco babaçu. Eles atiravam para o alto e ameaçavam de morte quem se aproximava das terras de Zé Bacari. As mulheres, a maioria acompanhadas dos seus filhos pequenos, saiam correndo, deixando o coco para trás. Machucavam-se nas cercas de arames farpados e nos espinhos de marajá, giquiri e papa terra.
Assim que desceu da canoa, Benedita avistou de longe, um dos capangas de Zé Bacari rodeando o trecho. Imediatamente escondeu-se por trás da moita de titara. Ficou por lá até que ele saísse do local. Ao sentir-se segura, continuou o percurso até chegar ao lugar em que guardou os cocos, mais ou menos dez minutos do local em que atracou a canoa. Apressou-se com medo de ser pega. Faltava apenas um cofo, quando ela ouviu pegadas indo em sua direção. Não dava mais tempo para correr até a canoa, ela ligeiramente escondeu-se por trás dos pés de sororoca. De lá podia escutar a voz esbravejando – Hoje eu pego essas peste!
Benedita estava com as pernas trêmulas, a boca seca, e o coração batendo mais rápido que uma cotia fugindo de caçadores. Viu-se acuada. Imediatamente pensou nos filhos e no companheiro. Poderia ter escutado Francisco… Mas como viver aprisionada no lugar em que deveria ser livre!? Enquanto isso, o som das pegadas aproximavam-se. Benedita rezava, implorando junto a Deus Pai, a proteção da sua vida. Assim que o capanga chegou no local, observou os cofos e alguns matos amassados. Deduziu que deveria ter quebradeiras de coco nas terras do patrão. Imediatamente ateou fogo nos cofos.
Benedita observava tudo agachada, chorando baixinho enquanto rezava. Ela não sabia o que fazer. Será que deveria se entregar? Ou, deveria ficar escondida esperando pela sorte? De qualquer forma o capanga não estava para brincadeira. Foi então que decidiu tentar fugir. Ela embrenhou-se na mata. O capanga levou um susto com o barulho, mas identificou que se tratava de uma pessoa, pois avistou o vulto da roupa em meio ao mato. Imediatamente armou a espingarda, deu um tiro para o alto, e soltou os cachorros.
Benedita corria sem olhar para trás. A sandália escapou dos seus pés. Mas ela não sentia os espinhos de papa terra. Apenas lembrava dos filhos e dos pais. A cada lembrança, mais rápido ela buscava correr, levando no peito os cipós de unha de gato e os galhos de murta que encontrava pela frente. Em meio ao medo, ela parecia não saber a direção que estava indo, apenas corria daquele homem que a perseguia.
O capanga, por sua vez, tentava alcançar Benedita. Apesar das pernas compridas, e do porte físico favorável, ele não tinha a mesma intimidade que ela com aquele lugar. Então, ele saiu atirando na direção de Benedita . Foi quando ela sentiu uma dor estranha na perna que lhe fez desabar. Benedita caiu como uma palmeira ao ser brutalmente derrubada pelo homem com suas máquinas cruéis. Ela gritou de dor, de medo, de desespero.
Já no chão, Benedita olhou para a perna direita e viu a calça jeans suja de sangue. Foi atingida. Suas mãos trêmulas e geladas até tentaram estancar o sangramento. Mas era impossível. Na sua mente não acreditava que iria ter o mesmo destino que os seus pais e os seus irmãos. Ela sempre soube do perigo que corria com a família, mas tinha esperança de viver no campo de forma digna e segura. Ver-se diante da morte, nunca foi intimidador e cruel. Mesmo buscando força para correr, era impossível, sua perna sangrava e doía muito.
Minutos depois o capanga chegou. Os cachorros já cercavam Benedita. Ele olhou para ela como olhava para uma presa. Com as mãos grossas, cheias de calos, ele puxou Benedita pelo braço e deu um chute na perna atingida pelo tiro. Ela gritou tão alto, mais tão alto, que o som da sua voz espalhou-se pela mata adentro, e as árvores pareciam chorar com ela. Mas ele não importou-se com a dor de Benedita.
– Hora, hora, peguei a ladra de coco– cuspiu no chão próximo a Benedita – Eu falei que de hoje não passava. – jogou ela no chão.
Benedita não dava uma palavra. Naquele momento palavras não iriam adiantar. Ela apenas chorava feito uma criança. Enquanto isso, ele a amarrava com cipó de escada de jabuti no tronco de uma palmeira babaçu. Benedita sempre fora uma mulher forte, corajosa e trabalhadora. Foi idealizadora da “Associação das Quebradeiras de Coco Babaçu do Povoado Tucum”. Mesmo tendo frequentado a escola apenas até os dez anos de idade, ela carregava consigo grandes saberes. Adorava participar das reuniões na associação. Foi assim que ela conheceu alguns dos seus direitos como quebradeira de coco babaçu. Mas infelizmente, os seus conhecimentos não a livraram de um tiro na perna e dois na cabeça. Naquela manhã, Francisco e os filhos receberam o corpo de Benedita, que foi morta por causa de três cofos de coco babaçu. Seu corpo foi enterrado, mas sua luta, não. A sua voz não morreu. Benedita há de viver em cada uma das quebradeiras de coco babaçu que lutam, assim como ela e sua mãe, Rosália, lutaram um dia. Digo mais: Benedita não morrerá enquanto existir mulheres no campo, buscando por seus direitos. Benedita viverá em cada palmeira de coco babaçu. Em cada manchado que é amolado. Em cada cofo que é tecido. Em cada coco babaçu!