UEMA Literatura apresenta a crônica “A mão esquerda”, de autoria aluno do curso de História, Ney Farias Cardoso.
Por Assessoria de Comunicação Institucional em 2 de janeiro de 2022
Na primeira edição de 2022, o UEMA Literatura apresenta a crônica “A mão esquerda”, de autoria do acadêmico do curso de História, Ney Farias Cardoso
A mão esquerda
Como era seu costume, antes de pensar num título e mesmo na primeira frase real e oficial do novo romance, Eleonora clicou em “Centralizar” e, na sequência, digitou em caixa alta e negrito: CAPÍTULO UM.
Depois, deu triplo “Enter” com duplo mortal. Ajustou o cursor na tela do note para elaborar um parágrafo que talvez não fosse o primeiro, muito menos o último… mas nada aconteceu. (Na verdade, o que ocorreu mesmo foi ter permanecido imóvel, boquiaberta e perplexa diante da primeira página…)
A primeira página do quê? Não faço a menor ideia. Juro por Deus.
Nisso, seu marido apareceu na sala. Bermuda, camiseta e chinelos. De banho tomado. Tinha acabado de alimentar os gatos. Prince e Diana dormiam agora no quintal, à sombra de uma bela e imponente amendoeira.
Paolo olhou para a tela ao passar por Eleonora. Sorriu e disse:
“É ‘bloqueio de escritor’ que fala?”
Ela suspirou e fechou os olhos.
“Valeu pelo apoio”.
Paolo acomodou-se num sofá. Pegou o controle da tela plana com a mão esquerda. Era sábado, dia de Campeonato Inglês. O gesto a incomodou. Um pouco. Sem uma resposta adequada da consciência para a origem do incômodo, achou melhor voltar a se concentrar em seus problemas literários. Mas por mais que forçasse as ideias, nada digno de nota dava as caras. “Vou acabar jogando essa porcaria no lixo!”, disse afinal.
“Minha linda, você já passou por isso. Não é novidade nenhuma”.
Paolo tinha razão. Como sempre, aliás. Por isso o amava. E esse amor às vezes virava ódio. Nada exagerado. No cômputo geral, se davam muito bem.
Uma vez deixada para trás toda a badalação ao redor do seu primeiro romance — “Faltou tempo até para morrer” —, ficou quase um ano e meio incapaz de produzir uma linha, quanto mais um parágrafo. Então, numa quarta-feira em que o temporal maníaco (com seus relâmpagos e trovões pavorosos) parecia zero disposto a jogar a toalha, todos os diques, muros e barreiras mentais se desfizeram. Então, arrebatada pelas benesses das musas, deu à luz de uma vez só dois calhamaços fabulosos: “Sobre os ossos do meu futuro”, com 640 páginas, e “A fogueira da sra. Ismália”, com oitocentas.
Paolo sorriu outra vez.
“Pois é. Quando essa maratona terminou, você ficou praticamente duas semanas inteiras entocada no quarto. Prostrada, como a Torre Fulminada pelo Raio”.
Embora soubesse que dona Marcelina tivesse ensinado ao neto tudo e mais um pouco a respeito das enigmáticas trilhas que levam ao tarô, Eleonora não gostou muito dessa comparação. Pelo menos, sabia que, diferente da avó, Paolo impediu as cartas de o lançarem no abismo. Sem qualquer possibilidade de retorno.
O celular dele tocou nesse momento. Levantou do sofá, se preocupou apenas em diminuir o volume da tevê (um cuidado que ela muito apreciou) e voltou para a cozinha.
“Diga lá, comandante Fábio. O quê? Jura? Eu sabia que uma hora, patati, patatá, piriri, pororó…”.
Talvez a conversa girasse em torno da famosa sinuca de todo santo sábado e todo sábado santo no bar do seu Feliciano. Ou talvez não girasse em torno de nada. Seu esposo tinha suas fofocas, ela as suas próprias e assim caminhava a humanidade. Do que Eleonora queria se livrar mesmo era da porcaria do bloqueio. E estava difícil, viu? Bem difícil.
Resolveu passear pelo calçadão. Não fazia tanto calor, a temperatura era amena. O céu, as lonjuras oceânicas e a brisa litorânea, quem sabe, lhe despertariam alguma amenidade que pudesse vender para alguma revista literária ávida por marcar vários pontos sobre a concorrência, ainda mais publicando uma tolice qualquer de uma “grande estrela das letras nacionais” (eis o mecanismo dos rótulos, senhoras e senhores).
Antes de desligar o note, Paolo retornou. Em vez da sua “menina dos olhos”, a cerveja em lata, bebia vinho branco em uma taça de cristal. Outra vez na mão esquerda. Armou a pergunta no cérebro: “Que novidade é essa?”. Mas não chegou a verbalizá-la. A indagação se embolou com o nó em sua garganta. Enfim entendeu o incômodo.
Seu marido não era canhoto.
Encarou o duplo. O doppelgänger. (Quem assistiu “Fringe” levante a mão.)
O duplo a encarou de volta. Sorria. Como se nada de mais importante tivesse acontecido no multiverso nos últimos dez minutos.
“Algum problema?”
“Problema nenhum”, disse Eleonora. Não tinha ideia se ele percebera seu nervosismo. Pelo sim, pelo não, levantou-se rapidamente. “Acho que vou seguir seu exemplo. Pode ser que um pouco de vinho me destrave”.
“Estamos aqui para isso, minha linda”.
Foi até a cozinha. Sentia-se gelada. A sensação piorou ao vê-los.
Diana. Prince. Decapitados e eviscerados, seus corpos deitados lado a lado na mesa.
Entre os coitados, uma carta de tarô.
Eleonora não precisou se aproximar dos cadáveres para ver que era a Torre Fulminada pelo Raio. A seguir, especulou inutilmente onde poderia estar o verdadeiro Paolo.
Não. Não é verdade. Não foi tão “inutilmente” assim.
Fechou os olhos por um instante. Ao abri-los, sabia exatamente o que fazer.
A primeira frase. Real e oficial.
Como diria o bem-humorado Paolo com quem se casara:
“É Fiat Lux que fala?”
São estranhos os desígnios das musas.
Voltou para a sala. Agora firme. Forte. Decidida a lutar com a única arma disponível.
Sentou-se. O duplo quis saber se o bloqueio persistia. Ignorou-o solenemente.
Só a história importava. A história era a sua vingança.
Eleonora inclinou-se um pouco sobre o teclado e digitou sob CAPÍTULO UM:
“Nunca mais tivemos notícias dele”.
Depois, como diria o sambista, foi aí que seu barraco desabou.