UEMA Literatura deste domingo apresenta a crônica “Arapuca”


Por em 19 de dezembro de 2021



                                                             

Nesta edição, o UEMA Literatura apresenta a crônica “Arapuca”, de autoria do professor do curso de Direito, Jean Nunes.

Arapuca

 

O domingo nem havia amanhecido quando me dei conta do alvoroço causado por um jovem beija-flor que entrou aqui em casa. Voou pela porta e atravessou o mezanino, exibindo-se para os moradores. Lindo e de um colorido exuberante que se refletia nas asas ansiosas, ele se movimentava de um lado para o outro, numa velocidade que os segundos tinham dificuldade de acompanhar. Apaziguou-se quando pousou na orquídea pendurada na palmeira que guarnece a sala e nela bebericou o néctar que lhe premiou a ousadia. Mas não quis se demorar. Logo manifestou o desejo de encontrar o caminho de volta para a casa.

Saudou a embevecida plateia e subiu em direção à claridade que entrava pela janela vertical que corta a parede da sala. Em vão. Apenas a parte de baixo possui uma abertura. O estirão de vidro de cinco metros é uma daquelas ilusões com que o destino testa a resiliência dos que habitam este planeta. Se a transparência é traiçoeira para os humanos, para as aves é insuperável. Mas ele não se resignou. Seu bico tilintou repetidas vezes no cristal. De um lado, do outro… A barreira, porém, permanecia indiferente e inflexível.

Apressamo-nos em abrir as outras janelas. Mas como avisá-lo? Sob sua vista, só havia o céu límpido pela frente… E como convencê-lo de que valeria a pena enfrentar os riscos que o chão expõe para seguir adiante? Ele não nos compreendeu. Ou compreendeu, mas não quis se arriscar. Pousou novamente na palmeira. Respirou. Olhou em volta e se deu conta de que estava numa arapuca. Foi possível perceber a tensão que tomou conta de seus pequeninos olhos.

Corri para pegar a escada. Talvez conseguisse estender um cabo de vassoura e guiá-lo. Mas aquele não era um papagaio ou uma rolinha e a minha solução não era a sua. Quanto mais me aproximava, mais distante e aflito ele ficava. Muita presunção a minha de achar que ele confiaria em mim. Nem nos conhecíamos. Imaginei que, se nos aquietássemos e lhe déssemos um pouco de paz, talvez achasse solução, por si mesmo, para os desafios daquele momento de sua vida.

Deixei a sala e levei os pequenos para o quarto. Desconversei, tentando distraí-los. Esqueçamos o beija-flor, logo ele vai embora – disse muito mais para mim mesmo que para os meninos. Outra ilusão. Conversa alguma nos despertou a curiosidade. O apreensivo silêncio que se fez entre nós era incomodado apenas pelo frenético som que saía do movimento incessante de suas asas. Revezava-se entre as duas janelas, num trabalho de persistência que o martirizava e nos comovia.

Até que descansou sobre o guarda-corpo do mezanino. Foi o pequeno quem anteviu o perigo: Pai, o Romeu! Foi por pouco. Não é todo predador que tem a destreza de um felino. Ele se espreitava atrás da cortina para dar o bote quando fiz o sinal. O beija-flor desta vez entendeu e alou, com a força que lhe restava, para se refugiar no pendente, exausto e desanimado. Havia tentado de tudo. Aquietou-se diante das adversidades que resultavam de circunstâncias maiores que sua capacidade de compreensão.

O meu pequenino foi até a cozinha e encheu uma pequena tigela com água, que deixou sobre a mesa. O beija-flor resistiu, mas acabou aceitando a gentileza. Bebia de frente para nós e de costas para o quintal. Na sua perspectiva, só havia prisão; na nossa, bastava se virar, que encontraria a porta da varanda escancarada.

A natureza também se compadeceu dele. Um Bem-te-vi cantou do alto da mangueira. Era um outro idioma. Mas a liberdade é uma palavra, como já o poetizou Cecília Meireles, que não há quem não entenda.

O visitante se virou e voou de volta para casa.



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