UEMA Literatura apresenta Crônica “Essenciais”


Por em 28 de novembro de 2021



Nesta edição, o UEMA Literatura apresenta a crônica “Essenciais”, de autoria de Silmayra Lima, Licenciada em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão.

Essenciais

Eu perdi um dente hoje, e é como se parte de mim fosse retirada “à força!”. Foi a primeira vez que isso aconteceu com um dente que eu sabia que não iria nascer novamente, ou melhor, não seria substituído por um novo. Dissolveu-se em mim, um pedaço enorme, considerável, insigne, porém, simplório; algo faltava e prejudicava minha fala, a comida, o cantar, o sorriso já não era tão revelador, tornou-se discreto. Mas, pensando bem, havia uma coisa errada nesse sofrimento, nas lágrimas que desabaram do meu rosto ao chegar em casa e notar que algo não estava ali, que eu não era mais a mesma.

É hora de parar, parar e pensar… em como uma pessoa deve se sentir quando perde a função de uma das pernas (podemos chamar de monoplegia a perda das funções motoras de um membro), ou as duas pernas, ou movimento de uma parte do corpo, até mesmo de todos os membros (paraplegia, hemiplegia, tetraplegia, consecutivamente). É hora de parar e refletir a dor da perda! Existem pessoas que nascem assim, sem que uma de suas partes diga: “-Presente!”, na hora da chamada. Imagine só acordar um dia e ao abrir os olhos não enxergar nada; escuridão resume. Então, é perceptível que uma simples tarefa com a faca, poderá se tornar algo árduo e doloroso, caso erre.

Eu estava na parada de ônibus indo a caminho do meu curso de intérprete, quando alguém toca meu ombro, viro e um menino alto, magro, dos olhos azuis, acena para mim o sinal de “Bom dia!” e eu respondo com o sinal de “Oi/Olá!” (detalhes do ocorrido serão descritos em outra crônica). Em um momento distinto, estou na UEMA e deparo-me com uma cena digna de aplausos, um menino magro, mediano e moreno, desce do ônibus, sozinho, aguarda na calçada e quando tenta atravessar a rua é impelido pelo instinto a voltar ao plano inicial. Era um carro em alta velocidade que passava na pista, ele aguarda mais um pouco, então, com passadas rápidas atravessa a rua, sobe na outra calçada, encontra um amigo que segura sua mão, coloca no ombro e vai adiante dele como um guia… Cego?! Aquele rapaz era cego? Puxa! Que extraordinário!

Trabalhei uma parte da minha vida com alunos com deficiência e sempre amei, talvez isso tenha me levado a fazer especialização em Educação Inclusiva, encontrei na minha jornada com o “famoso” Transtorno do Espectro do Autista; tive alunos TEA que sabiam cantar, tocar, desenhar, criar estórias, falar sobre conhecimentos científicos e até mesmo dinossauros. Todo dia sentavam-se no mesmo lugar e faziam as mesmas coisas, eram ótimos alunos, inteligentes que só vendo! Quando eu sentava na sala dos professores para descansar, era abraçada calorosamente por uma aluna que me beijava no rosto, perguntava se eu queria ser sua amiga, olhava para mim e dizia: “-Tia, você é muito bonita mesmo!”, ela tinha Síndrome de Down, vivia sorrindo.

Ah! Mas eu não posso esquecer-me do meu “anjinho”, cabelos loiros, magro e quase do meu tamanho… dislexia, seu maior obstáculo era minha matéria, foi preciso subir nessa dificuldade e fazê-la de degrau… difícil, porém conseguimos.

Pessoas todos os dias nascem com deficiências diversas; pessoas todos os dias se tornam deficientes, seja por uma queda, uma infecção, vírus, batida de carro entre outros; em suma, qualquer ser humano pode vir a ser uma pessoa com deficiência, na verdade, peculiares todos somos em nossos defeitos, dificuldades, limitações, porém há alguns que nascem com um tipo de essência, fazendo-nos repensar nossas atitudes.

Essenciais, seria uma alcunha intriguista para as pessoas que rompem ou passam a serem receptáculos de um dom divinal, é a dádiva de conquistar e superar as desvantagens do sistema. Lembro-me, quando penso nas pessoas com deficiência, de uma passagem bíblica localizada em João, Capítulo 9, em que os discípulos perguntavam: “- Rabi, ele é cego por causa de seus pais ou de seu próprio pecado?” e Jesus redarguiu: “- Nem por causa dele e nem de seus pais; mas para que se realize nele a obra de Deus.”. É por isso que toda vez que me lembro de um desses meus alunos, ou vejo uma pessoa com deficiência na rua, no ônibus, no curso, ou em outro lugar, consigo contemplar a glória de Deus e perceber que minhas perdas são bem pequenas, rapidamente superáveis. Existo, não para gabar-me da visão, da fala, pernas ou audição que tenho (que já foi ligeiramente afetada, tornando-me parcialmente surda de um dos ouvidos), porém para ser a “parte que o outro não possui”, aliás, quando nos importamos somos auxiliares um dos outros.

Compreendo meu papel, porém, isso só ocorre pela existência maravilhosa dos essenciais, que o são para que eu entendesse o valor da obstinação, de não desistir mesmo com os espinhos, são essenciais na TERRA, pois provocam em nós a certeza de que nada pode impedir que prossigamos até o fim, sem titubear. Essas pessoas são essenciais, pois nos inspiram instigam, cativam e seduzem a viver. Não há nada melhor que chegar a conclusão que o sofrimento é necessário, mas não é eterno, que perder um dente não é nada diante do milagre reservado para nós, quando apreciamos o fenômeno do indispensável, descendo com dificuldade da escada, apoiando-se no corrimão e vindo em sua direção para dizer: “-Tia, eu amo você!”, isso sim é essencial.



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