UEMA Literatura: Leia a Crônica “23 Itens”


Por em 15 de agosto de 2021



                                                         

O projeto UEMA Literatura apresenta neste domingo a crônica “23 Itens”, escrita pelo professor Jean Nunes, do Curso de Direito da UEMA.

 

23 ITENS

 

– Meu bem, já te enviei a lista.

– Lista? Que lista?

– A dos reparos. Você não vai entrar de férias?

– Você disse bem: férias! Tempo para esticar as pernas e descansar a mente.

– Você tirou férias do trabalho, e não do casamento. Aqui em casa tem um monte de coisa para fazer.

– Ah, não. Preciso de um momento de paz, de tempo para me dedicar ao ócio, à contemplação e à beleza.

– Os “hippies” já tentaram isso e não foram muito sucedidos.

Contrariado, peguei o celular e vi, na lista, limpeza da calha, corte da grama, substituição da maçaneta, ajuste da cortina, reparo na cerca elétrica, colagem do rodapé, troca da lâmpada… Ao todo, parcimoniosos 23 itens. Até reunião, pelo Zoom, com o Seu Juvêncio, encanador, tinha.

– Para fazer tudo isso aqui você precisa de uma empresa de serviços de engenharia, e não de um marido.

– A Fernanda Lima só tem o marido e ele cozinha e fez até uma capela para eles se casarem.

Sim. O Rodrigo Hilbert. Aqui cabe um parêntese. Se nas redes sociais Lula e Bolsonaro dividem as atenções – e o ódio – de “meio mundo” de gente, aqui em casa só dá o Hilbert. A situação piorou desde que Dona Lili, em visita ao PROJAC anos atrás, encontrou por lá o diacho do gaúcho e, após um caloroso abraço, que até ciúme na Fernanda despertou, concluiu que ele, além de ser o Hilbert, era cheiroso. De lá para cá, o homem é a métrica de tudo quanto faço por aqui e tem balizado até a escolha do meu perfume.

Mas não me deixei vencer. Olhei para ela e, como bom advogado, atravessei a contestação:

– Meu amor, a Fernanda já esclareceu. Ele não fez sozinho. Talvez tenha apenas ajudado. No máximo, pintado uma ou outra parede.

– Se você trocar a tampa do vaso do seu filho já terá feito muito e talvez dê até entrevista no Fantástico também.

– Esse item aí não “tá” na lista.

– Acabei de incluir. “É fato superveniente”. Não é assim que vocês falam no direito?

Aqui cabe mais um parêntese. Na verdade, dois. Os reparos domésticos nunca cessam. Nunca mesmo. Não importa o quanto trabalhe, se esforce, sempre haverá o que fazer. No meu caso, ainda que não houvesse, Dona Lili que, além de sogra, faz também as vezes de síndica, se encarrega de arrumar um. É incrível o prazer que ela sente ao descobrir que algo precisa de conserto. Logo esboça um sorriso largo e triunfante de quem parece ter encontrado a pepita de ouro com que resolverá todos os seus problemas financeiros.

Para fechar o segundo parêntese, afirmo que, quando minha esposa apela para o direito, a “coisa” se encaminha para um nível mais, digamos, delicado, e que a experiência me mostrou que o melhor a fazer é botar o rabinho entre as pernas e cumprir o que foi determinado.

– Você tem é sorte de eu já ter comprado a tampa.

Nem respondi. Se começasse logo, pensei, quem sabe não tivesse uns dois dias de férias de verdade dali a umas três semanas, quando já executados os outros 23 itens da lista!? Além disso, contava com uma habilidade incomum para o trabalho feito à mão. Não teria dificuldade.

Peguei o produto e vi que havia um manual na caixa. Claro, não o li. Um homem que se preze não lê um manual de instalação de uma tampa de vaso sanitário. Ainda mais um homem da ciência como eu. É contra o regulamento. Se o compadre chegasse de improviso e me visse naquela situação, até do grupo da pelada seria excluído.

A síndica, porém, permanecia ali vigilante:

– Você não acha melhor ler o manual?

– Dona Lili, é uma tampa de vaso sanitário. Só tem quatro parafusos. Se fosse a primeira vez, tudo bem.

– Mas o Rodrigo Hilbert…

– Pode parar.

Pus o manual de lado e arregacei logo as mangas para não dar chance ao inimigo.

Até que me esforcei para passar a impressão de que soubesse o que estava fazendo, mas a tampa desengonçada e aqueles teimosos parafusos não ajudavam. Se encaixava de um lado, saía do outro. E a porca? Até descobrir que ela devia ser colocada por debaixo do vaso, muita gota de suor já havia escorrido.

Reconhecer, humildemente, minhas limitações e ler o manual, sob o olhar de reprovação da Dona Lili, parecia cada vez mais um caminho inevitável. Como tinha um resquício de brio ainda não destruído pelo Hilbert, esperei que ela desse uma trégua e corri, em sigilo, para pegar o papel. E ele teria ajudado mesmo, não tivesse sido escrito em mandarim. Fiz então o caminho dos homens contemporâneos: pus o fone e perguntei para o YouTube se ele poderia me dar uma “mãozinha”…

– Como trocar a tampa…

Nem terminei de escrever, apareceram cinco opções de vídeos do Hilbert ensinando a trocar de tudo, do vaso sanitário à borracha da panela de pressão. Irritado, fechei o aplicativo.

Quem me salvou mesmo foi o Seu Juvêncio – a quem mando meus sinceros agradecimentos –, que não tem programa de TV e nem exala aquele perfume todo, não cozinha e nem é exibido, mas ajuda os amigos a vencerem suas limitações por meio de uma videochamada em pleno Dia do Trabalhador.

Ao ver o resultado do trabalho bem executado, a patroa incentivou:

– Pronto, só faltam os outros 23 itens.

 

Para ler outros textos do mesmo autor, acesse o blog Pesquise Direito pelo link https://pesquisedireito.blog/



Últimas Postagens