UEMA Literatura deste domingo apresenta poesia e crônica
Por Assessoria de Comunicação Institucional em 22 de agosto de 2021
O projeto UEMA Literatura apresenta neste domingo duas publicações: a poesia “Quando a liberdade se foi”, de autoria da acadêmica do curso de Pedagogia, campus São Bento, Fátima de Jesus Corrêa e a crônica “Pedido de Socorro”, de autoria do acadêmico de Direito, Leonardo Castro Almeida.
Poesia – Quando a liberdade se foi, por Fátima de Jesus Soares Corrêa
Estava tudo calmo em mim
Meu coração batia sem medo
O horizonte era meu
Eu sabia que podia ir
Onde minha alma me levasse
A liberdade cantava lá fora
Mas tudo mudou
Meu corpo não me pertence
Minha voz foi silenciada
Minhas mãos não podem tocar
Meus olhos só sabem chorar
Meu riso se perdeu
Meus pés não podem ir
Não sei como fugir
Tudo em mim se desfez
Ditaram minha regras
Tiraram minha liberdade
Minha história se foi
Minha luta se perdeu
Resistir? Há como lutar?
Eles vieram
Ditaram as regras
Colocaram as jaulas
Proibiram o canto
O mundo lá fora
Perdeu a cor, o sabor e a liberdade
Crônica – Pedido de Socorro, por Leonardo Castro Almeida
Era para ser mais uma noite de serviço, dessas que fazemos rondas ostensivas e atendemos ocorrências de briga de vizinhos. Mas não. Cheguei no batalhão, me uniformizei, engraxei o coturno e recebi a ordem do meu superior para pegar a chave da viatura pois eu seria o motorista dele e iríamos trabalhar juntos aquele plantão. Fiquei feliz. É um comandante experiente que tenho profunda admiração.
Apressado, olhei no relógio e vi que já estava atrasado cinco minutos. Não gostei. O que iriam dizer aqueles colegas que me consideram pontual? Já estava pronto e tomando direção indefinida dentro dos becos, ruas e vielas da comunidade na qual trabalho. Subo. Desço. Paro. Dou informações a cidadãos. Encerro festas clandestinas. Faço rondas. Nada de anormal até que o comandante chama a minha atenção: “faz o retorno lá na frente, olhei algo estranho”. Voltei.
Logo à frente havia uma jovem em uma casa de sobrado fazendo sinais com as mãos e gesticulando algo que a penumbra da noite e o poste sem luz não me permitia enxergar sequer entender nada. Estaria ela nos avisando algo? Quem sabe indicando algum comércio ilegal de entorpecente, eu pensei. Estava errado. Ela gritava por socorro sem dizer uma palavra.
Parei a viatura, atravessei a rua e subi a escada em formato espiral que desenhava um caracol na fachada da residência. Em baixo funcionava um boteco sem vida de faixada apagada pelo tempo. Quando me aproximei da janela que a jovem apoiava os cotovelos vi um homem alto e raivoso sair correndo. Meu tirocínio policial foi mais rápido. Entendi naquele momento tudo o que estava acontecendo. Consegui alcançá-lo.
Vou chamar a jovem protagonista deste enredo de Joana – me faz lembrar de Joana d’Arc, heroína francesa –, para que a verdadeira identidade dela não seja revelada. Joana nos contou que sofria violência doméstica desde que se mudou da cidade natal de São João Batista e veio morar com o companheiro em São Luís há dois anos. Joana tinha 23 anos, estatura mediana e um olhar angustiado de quem não aguentava mais sofrer as agressões do marido calada. Ela não podia sair na rua, ficava o dia trancada, não podia trabalhar, não podia ter amigos, teve os documentos pessoais recolhidos, era proibida de falar com a família, sofria agressões físicas, era humilhada. Joana não tinha paz, ela não tinha vida. De repente, um bebê chorou.
O filho de Joana tinha apenas dois meses e dormia um sono profundo quando chegamos, até que se espantou com o barulho da nossa voz. Falávamos alto, é verdade. Mas era necessário. O boteco lá em baixo tocava uma música dos anos 90 da qual não consigo recordar. O bebê já deve estar acostumado com essa melodia, murmurei com meu comandante.
O homem tentou fugir quando nos avistou. Sabia que estava fazendo coisa errada. Joana nos disse que registrou um boletim de ocorrência em desfavor dele algum tempo atrás que não sabia precisar. Busquei no sistema e para minha surpresa havia uma medida protetiva de urgência em vigor sendo descumprida. Dei voz de prisão em flagrante delito.
Pedi que Joana calçasse o chinelo e botasse uma roupinha no bebê para que todos pudéssemos ir até a delegacia da mulher. O Senhor me espera pegar uma bolsa para botar as minhas roupas e as roupas meu filho? Pediu Joana com os olhos cheios de lágrimas. Não quero mais voltar aqui, completou. Eu não poderia dizer não. Só ela sabe como foi viver durante dois anos agredida, ameaçada e obrigada a ter relação sexual contra a própria vontade. Ela não poderia se recusar a satisfazer os desejos dele. O que seria dela se dissesse não? Não quero nem imaginar.
Depois de alguns minutos a jovem desceu a escada de espiral com o filho nos braços, a bolsa pesada nas costas e o coração cheio de esperança. Joana sabia que a partir daquele momento teria sossego e poderia criar o filho tranquilamente. Ela estava certa.
Chegamos na delegacia, apresentei o sujeito, comuniquei o descumprimento da medida protetiva e relatei tudo que eu tinha ouvido da jovem. A delegada ouviu atenciosamente cada palavra e pediu para conversar com a vítima. O bebê acordou novamente e Joana decidiu entrar no gabinete da Doutora o amamentando. Esperei do lado de fora.
Após todo o procedimento na delegacia, Joana disse que passaria a noite na casa de uma conhecida e iria voltar para seu lar em São João Batista no dia seguinte. Vocês podem me deixar na casa de uma amiga? Perguntou a jovem ansiosa por uma resposta. Não sei andar pela cidade e não tenho dinheiro para pagar um táxi, disse olhando para o chão. Não podemos recusar esse pedido, comentei com o comandante da guarnição. Ele fez que sim com a cabeça. Deixei a jovem e o bebê no endereço informado. Agora eles estavam seguros.
No dia posterior, o flagranteado teve a liberdade provisória concedida durante a audiência de custódia e apesar de ele responder a outro processo criminal por violência doméstica referente a um casamento anterior, isso não foi suficiente para que a prisão em flagrante fosse convertida em preventiva porque segundo o magistrado “não há gravidade suficiente e concreta a justificar a medida extrema”. Decisão judicial é decisão judicial.
Os raios de sol começam a iluminar o céu. A noite passou rápido, né? Perguntou o comandante sem esperar uma resposta. Ele não estava errado. Olhei no relógio e já estava na hora de encerrar o plantão. Cheguei no batalhão, entreguei a viatura e me dirigi até o alojamento. Lembrei de Joana. Quantas mulheres estão sofrendo violência doméstica neste momento? Pensei, incomodado. Nunca saberei a resposta. Torço para que Joana tenha uma nova vida e seja feliz com seu filho. Eu fiz a minha parte. Hora de ir para casa.